Escrito por Constância Matos
“ Diz-se que as catedrais são livros de pedra. Nós somos livros de carne. Vivemos o que somos”.
Evaristo Eduardo de Miranda
Ser sujeito vivente é estar o tempo todo em troca, vivendo e trocando experiências. Trocamos com outro, com o mundo e nesta troca afetamos e somos afetados. Para a escrita desta edição, por exemplo, fui afetada por uma troca sensível com o Inner Guilherme e a Fernanda Ricci, uma amiga, mestranda em Educação Somática pela Universidade Federal da Bahia e ambos me fizeram lembrar de um texto do Jorge Larrosa Bondía, Notas sobre a experiência e o saber da experiência, texto que eu havia lido há alguns anos atrás em uma disciplina de Expressão Corporal no Curso de Bacharel em Artes Cênicas. Ao reler o texto de Bondía não tive dúvidas em trazê-lo para construção desta reflexão sobre a EXPERIÊNCIA¹. Texto lindo, recomendado para todos os que pretendem e se interessam em levar para a sala de aula um olhar não didatizado sobre o tema. Em Notas sobre a experiência e o saber da experiência, Bondía questiona se realmente experienciamos as coisas em uma era, onde estamos sobrecarregados de informações.
O tempo todo estamos fazendo coisas, mas será que estamos de fato nos permitindo experencia-las? Caso esteja lendo este texto algumas horas após ter começado seu dia, pare e pense nos acontecimentos do dia até o presente momento. Convido você a pausar e pensar sobre o que realmente conseguiu vivenciar no corpo como experiência, e o quanto de informações conseguiu processar de tudo que você recebeu e deu de si até agora. Você pode ter feito uma prática corporal, lido um jornal, enviado e respondido e-mails, ouvido um podcast, ministrado uma aula, assistido um vídeo de um curso on-line, passeado com o pet ou levado as crianças na escola. Você já parou para pensar que em todas estas atividades listadas, o corpo está passível de experiência se assim permitirmos. E que cada um de nós aqui nesta leitura podemos ter feito as mesmas coisas listadas acima, mas cada um as “encarnou” de uma maneira, tornando o “passar por”, experienciar as coisas algo tão singular.
Segundo Bondía, permitir que o corpo viva genuinamente as experiências talvez seja um dos maiores desafios dos indivíduos da sociedade contemporânea. Bondía credita a escassez da experiência ao excesso de informações que recebemos diariamente, ao pouco tempo que dispomos para vivenciá-las, a obrigatoriedade de opinarmos, dominarmos e/ou pelo menos alimentar a ilusão de dominar todos os assuntos que estão em voga. Para o autor este modo de estar no mundo corrobora para nos distanciar da experiência. Vivemos tão ocupados que nos sobra pouco tempo para viver as experiências.
Aproximando a fala de Bondía com o nosso mundo, o mundo do Movimento, chamo a atenção para algo rotineiro; as ofertas de atualizações profissionais. Nos últimos seis anos os achados sobre fáscias e tensegridade fizeram explodir as ofertas de cursos e atualizações, sempre com o apelo de nos preparar e fazer-nos profissionais diferenciados no mercado. Assentimos ao apelo e empolgados compramos cursos, investimos em materiais e apostilas, recebemos uma batelada de informações e não sabendo como colocar em prática as informações recebidas, as guardamos em alguma gaveta da memória e nunca mais a abrimos. E o que supostamente iria transformar nosso modo de dar aula e a vida dos nossos alunos transforma-se em mais uma certificação para pendurarmos na parede ou guardarmos em outra gaveta, a do armário. Quem nunca se viu nesta situação? Veja bem caros colegas/instrutores, aclaro que não estamos indo de encontro à necessidade de nos atualizarmos e tampouco padronizar comportamentos de cada sujeito, o desejo é compartilhar com vocês, esta questão importantíssima que nos traz Bondía, o olhar sobre a experiência em tempos onde acumulamos informações e não vivenciamos a experiência. Se nós, propositores do movimento, estamos mergulhados em um ambiente não propício a experiência, como gerar para o outro o que não temos conosco? Se em razão do excesso de informações que recebo, não processo e não tenho tempo para imprimir na minha carne o que recebi, não houve aprendizado porque EXPERIÊNCIA é tocar e ser tocado, ou seja, não está separada da vida. Se não sou tocado não houve aprendizado, e ausência de aprendizado é igual a não experiência, conforme diz o autor escolhido para tecer este diálogo com o leitor. A pressa de devorarmos as informações nos anestesiou a ponto de adotarmos comportamentos que embotam a experiência. Dispersos nas ações mecanizadas do cotidiano, não percebemos que estamos atolados, presos a um estilo de vida, que nos faz correr de um lado para o outro, ler vários livros e não os processar, fazer cursos e não os colocar em prática, estar com o outro e não estar presente. E assim, neste vai e vém suprimimos o espaço criativo, lugar fundamental quando se pensa a EXPERIÊNCIA.
[…]Recebemos tantas informações que quase se torna impossível distinguir o saber no sentido do “estar informado sobre um determinado assunto” do saber no sentido de conhecimento, conhecimento derivado da experiência, do passar por algo, do tocar e ser tocado.[…] a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.
Temos sede de saber, não o saber derivado da palavra em latim Sapere, mas o saber no sentido de informação, ao que acontece e não o que o acontecimento nos proporciona, como ele nos atravessa. Algumas perguntas que ficam para pensarmos: como saímos deste lugar de espectadores da experiência? Como perceber claramente se estamos nos colocando em experiência e também oportunizando ao aluno/aprendiz vivenciar a experiência? Se temos como propósito proporcionar a experiência para nossos alunos/aprendizes, cabe a nós abrir espaço para ações possam imprimir a experiência na nossa própria carne. Pode ser que seja este o caminho mais rico para transformar a nós mesmos e a todos os com quem dividimos o espaço/mundo.
Bibliografia consultada
BONDÍA Larrosa Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Espanha. 2002
https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003
GUEDES.O. Adrianne. Sem tempo de ser corpo: uma experiência da formação de professores. Brasil. 2018