Escrito por Constância Matos
“Trazer a mente para o nosso corpo nos torna indivíduos mais felizes e mais inteiros”.
Cris Fáscia
“Penso, logo existo”. A dicotomia cartesiana criou e manteve um abismo entre corpo e mente por muito tempo. Este pensamento foi um incômodo para muitos estudiosos entre eles, António Damásio, que em seu livro “O Erro de Descartes” contesta o pensamento concebido pelo filósofo francês autor da frase célebre que prega a máxima de que somos somente uma coisa pensante não levando em conta a nossa experiência enquanto seres que se relacionam com o mundo externo. Damásio é o nosso convidado para tecer a reflexão desta edição do nosso caderno que pretende falar da correlação sistema nervoso autônomo, emoções, sentimentos e a contribuição do movimento somático na melhora da qualidade de vida do sujeito a partir da construção do estado de um corpo presente. É certo que o nosso pensamento pressupõe sim a nossa existência, mas também pressupõe a existência do mundo e do outro. A partir da observação de pacientes neurológicos, que o médico e neurocientista António Damásio defende a tese de que o nosso corpo e cérebro são indissociáveis e que funcionamos a partir de um grande circuito bioquímico e neural, o que nos faz portanto, organismos vivos e complexos. Para chegar perto de uma resposta para saber quem somos e por que somos faz-se necessário entender que o organismo humano possui uma estrutura miríade de componentes (damásio, 2006, p. 112) e que razão, sentimento, emoções e comportamento social andam juntos, já que os sentimentos e emoções são uma percepção direta do nossos estados corporais e constituem um elo essencial entre corpo e consciência.
“Quando afirmo que o corpo e o cérebro formam um só organismo indissociável, não estou exagerando. De fato, estou simplificando demais. Considere que o cérebro recebe sinais não apenas do corpo mas, em alguns de seus setores, de partes de sua própria estrutura, as quais recebem sinais do corpo. O organismo constituído pela parceria cérebro-corpo interage com o ambiente em conjunto, não sendo a interação só do corpo ou só do cérebro. Porém, organismos complexos como os nossos fazem mais do que interagir, fazem mais do que gerar respostas externas espontâneas ou reativas que no seu conjunto são conhecidas como comportamento. Eles geram também respostas internas, algumas das quais constituem imagens (visuais, auditivas, somatossensoriais) que postulei como sendo a “base da mente”. (DAMÁSIO, p.114)
Um esquema para melhor compreendermos o que Damásio quer nos dizer:
⇒ cada músculo, articulação e órgão interno pode enviar sinais para o cérebro através dos nervos periféricos ⇒ estes sinais entram no cérebro no nível da medula espinhal ou do tronco cerebral ⇒ são transportados de estação a estação neural ⇒ levados até os córtices somatossensoriais no lobo parietal e na região insular ⇒ as substâncias químicas que surgem da atividade do corpo alcançam o cérebro por meio da corrente sanguínea influenciando o seu funcionamento, diretamente ou por estimulação de locais cerebrais ⇒ o cérebro atua na direção oposta a partir dos nervos tendo como agentes o sistema nervoso autônomo ou visceral e o sistema músculo-esquelético voluntário ⇒ sinais para o sistema nervoso autônomo tem origem nas regiões primitivas (a amígdala, o cíngulo, o hipotálamo e o tronco cerebral) ⇒ sinais para o sistema músculo-esquelético têm origem nos córtices motores e núcleos motores subcorticais ⇒ cérebro atua também por meio de substâncias químicas
(hormônios, transmissores e moduladores) que são liberadas na corrente sanguínea. (Damásio, 2006. p.116).
De acordo com Damásio, o fato de um organismo possuir uma mente significa que ele pode formar representações neurais, o que tornaria as imagens manipuláveis, desta maneira influenciando o comportamento e como o ser humano vai organizando a sua sobrevivência. Possuímos padrões inatos para a nossa sobrevivência que são mantidos pelo tronco cerebral e pela hipotálamo. O hipotálamo tem papel importante na regulação das glândulas endócrinas e no funcionamento do nosso sistema imunológico. Esta regulação está relacionada com o tronco cerebral e é complementada por controles no sistema límbico. Vimos até aqui a complexidade que é o funcionamento da nossa anatomia e o funcionamento deste setor cerebral. Não é nossa intenção discutir esta complexidade, mas precisávamos chegar até o sistema límbico que tem lugar de importância no estabelecimento de impulsos e instintos e uma função especial no processamento das emoções e sentimentos. Com a ajuda do sistema límbico e do tronco cerebral é que o hipotálamo regula o nosso meio interno. A vida depende da regulação destes processos que se excessivamente desregulados levam o indivíduo à doença ou morte. Vale lembrar que os sinais químicos dos demais sistemas do corpo também são reguladores do hipotálamo. (Damásio, 2006, p. 147)
Emoções e sentimentos
A emoção é um impulso neural que move um organismo para a ação. Etimologicamente, a palavra emoção provém do termo latino emotione = a movimento, ato de mover. Derivado tardio duma forma composta de duas palavras latinas: Ex = fora, e motio = movimento. As emoções podem ser primárias ou secundárias. As primárias são pré-organizadas e dependem da rede do sistema límbico, sendo a amígdala e o cíngulo suas principais personagens; podemos dizer que elas ativam um estado de corpo característico da emoção de medo, alterando o estado cognitivo de resposta. (Damásio, 2006,p.163). Podemos dizer que o mecanismo das emoções primárias não respondem ao conjunto de tudo que se relaciona a um comportamento emocional. As emoções secundárias encontram expressão a partir de imagens mentais organizadas num processo de pensamento. Envolve reflexão e respostas corporais a partir de um determinado contexto, situação e ambiente. As imagens invocadas podem ser ou não verbais. Registra-se mudanças expressivas no equilíbrio funcional do nosso corpo. Um exemplo das sensações provocadas por uma emoção secundária seria o encontro com um amigo que não vemos há muito tempo ou o recebimento de uma má notícia. Na primeira situação o coração acelera, a pele aquece, o rosto desenha uma expressão de alegria.. Na outra, a máscara de tristeza aparece, a pele empalidece, a boca pode ficar seca etc. Nas duas situações são registrados mudanças no funcionamento das vísceras (Damásio, p.164).
Compreende-se o sentimento como a essência de sentir uma emoção, o substrato de um sentimento se completa com as alterações nos processos cognitivos que são induzidos por substâncias neuroquímicas. O que nos interessa como facilitadores corporais é que são eles, os sentimentos que nos permitem cuidar do corpo:
Os sentimentos permite com que o Mind the body seja corporalizado:
Os sentimentos permitem-nos cuidar do corpo “ao vivo”, quando nos fornecem imagens evocadas do estado do corpo adequado a determinadas circunstâncias. (…) permite-nos vislumbrar o que se passa na nossa carne, no momento em que a imagem desse estado se justapõe às imagens de outros objetos e situações; ao fazê-lo os sentimentos alteram a noção que temos desses outros objetos e situações. Em virtude desta justaposição, as imagens do corpo conferem às outras imagens uma determinada qualidade positiva ou negativa. de prazer ou dor. (Damásio, p. 190).
Levando em conta que os sentimentos são catalisadores para nosso olhar cuidadoso para com o corpo e que o cérebro organiza a representação da alteração de um estado corporal de dor e prazer a partir dos seus neurotransmissores e neuromoduladores, os movimentos somáticos resultam em uma excelente ferramenta para desenvolver estratégias para o cuidado de si. É um convite para que o aluno/paciente cuide, reconheça e habite o próprio corpo, proporcionando uma condição corporal de reconhecimento de “ser inteiro” em razão do despertar da consciência/self .O estado de consciência e presença no mundo evita o comportamento robô, impede que sejamos como uma máquina manipulável; reaviva a nossa imaginação e criatividade nos ajudando na compreensão dos processos da dor e do sofrimento, seja ele físico ou da alma. A educação somática dá suporte para afirmarmos nossa verdadeira identidade no mundo e a partir disso construir uma melhor relação com o outro e com o mundo externo. Esta criativa e inteligente forma de mover e descobrir as possibilidades de movimentar o corpo libera hormônio (encefalinas, endorfinas, serotonina, oxitocina entre outros) que proporcionam a sensação de bem estar físico e mental e um consequente fortalecimento de todo o sistema imunológico favorecendo um ótimo funcionamento do organismo como um todo, na medida em que organiza a canalização das energias desperdiçadas pelas tensões emocionais do dia-a-dia proporcionando alívio das dores físicas e dos sofrimentos da alma.
Bibliografia Consultada
CALVINS. S. Hall e VERNON J. Nordby. Introdução a psicologia Junguiana. São Paulo: Cutrix, 2020.
DAMÁSIO. R. António. O Erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: 1994.
Outras mídias
Fáscia & saúde para todos. Fáscia, movimento e equilíbrio. Cristiano Queiroz Guimarães e Bruna Petito
https://open.spotify.com/